sábado, 2 de outubro de 2010

A tese perfeita - por Zé Murilo de Carvalho

Olá! Sou eu aqui novamente! Até que está durando isso aqui.


Bom, hoje não vou escrever muito. Vou deixar 90% do texto encarregado pelo mito no Brasil: José Murilo de Carvalho. O cara é simplesmente um dos melhores escritores de História Republicana, com livros como Os Bestializados e A formação das almas: o imaginário da República no Brasil.

Bom, historiadores não são conhecidos pelos seus dotes literários, isso é bem verdade. De toda forma, o Zé ultrapassa qualquer espectativa. O cara é bão mesmo.

De tão bão, ninguém melhor que ele pra dizer qual o caminho das pedras pra se escrever a tese perfeita! Esse texto que eu vou mostrar aqui foi mandado pelo Alcides por e-mail, que recebeu de uma pessoa que teve aula com o cara. Parece que foi uma forma de descontrair as tensões dos alunos com relação a "Acadimia".


Lá vai!


COMO ESCREVER A TESE CERTA E VENCER

*José Murilo de Carvalho

Ter que fazer uma tese de doutoramento na incerteza de como será recebida e na insegurança quanto ao futuro da carreira é experiência traumática.

Quando passei por ela, gostaria de ter tido alguma ajuda. É esta ajuda que ofereço hoje, após 30 anos de carreira, a um hipotético doutorando, ou doutoranda, sobretudo das áreas de humanidades e ciências sociais. Ela não vai garantir êxito, mas pode ajudar a descobrir o caminho das pedras.

Dois pontos importantes na feitura da tese ou na redação de trabalhos posteriores são as citações e o vocabulário. Você será identificado, classificado e avaliado de acordo com os autores que citar e a terminologia que usar. Se citar os autores e usar os termos corretos, estará a meio caminho do clube. Caso contrário, ficará de fora à espera de uma eventual mudança de cânone, que pode vir tarde demais.

Começo com os autores. A regra no Brasil foi e continua sendo: cite sempre e abundantemente para mostrar erudição. Mas, atenção, não cite qualquer um. No momento, a preferência é para franceses, alemães e ingleses, nesta ordem. Entre os franceses, estão no alto Ricoeur, Lacan, Derrida. Deleuze, Chartier, Lefort, Foucault e Bourdieu ainda podem ser citados com proveito. Quem se lembrar de Althusser e Poulantzas, no entanto, estará vinte anos atrasado, cheirará a naftalina. Se for para citar um marxista, só o velho Gramsci, que resiste bravamente, ou o norte-americano F. Jameson. Entre os alemães, Nietzsche voltou com força. Auerbach e Benjamin, na teoria literária, e Norbert Elias, em sociologia e história, são citação obrigatória. Sociólogos e cientistas políticos não devem esquecer Habermas. Dentre os ingleses, Hobsbawm, P. Burke e Giddens darão boa impressão. Autores norte-americanos estão em alta. Em ciência política, são indispensáveis. R. Dahl ainda é aposta segura, Rorty e Rawls continuam no topo. Em antropologia, C. Geertz pega muito bem, o mesmo para R. Darnton e H. White em história.

Não perca tempo com latino-americanos (ou africanos, asiáticos etc.). Você conseguirá apenas parecer um tanto exótico. Um autor brasileiro, no entanto, nunca poderá faltar: seu orientador ou orientadora. Ignorá-lo é pecado capital! Você poderá ser aprovado na defesa da tese mas não terá seu apoio para negociar a publicação dele e muito menos orelha assinada por ele. Se o orientador não publicou nada, não desanime. Mencione uma aula, uma conferência, qualquer coisa.

O vocabulário é outra peça chave. Uma palavra correta e você será logo bem visto. Uma palavra errada e você será esnobado. Como no caso dos autores, no entanto, é preciso descobrir os termos do dia. No momento, não importa qual seja o tema de sua tese, procure encaixar em seu texto uma ou mais das seguintes palavras: olhar (as pessoas não vêem, opinam, comentam, analisam, ela têm um olhar); descentrar (descentre sobretudo o Estado e o sujeito); desconstruir (desconstrua tudo); resgate (resgate também tudo o que for possível: história, memória, cultura, Deus e o diabo, mesmo que seja para desconstruir depois); polissêmico (nada de "mono"); outro, diferença, alteridade (e diferença é erudita), multiculturalismo isto é básico: tudo é diferença, fragmente tudo, se não conseguir juntar depois, melhor); discurso, fala, escrita, dicção (ou autores teóricos produzem discurso, historiadores fazem escrita, poetas têm dicção); imaginário (tudo é imaginado, inclusive a imaginação); cotidiano (você fará sucesso se escolher como objeto de estudo algum aspecto novo do cotidiano, por exemplo, a história da depilação feminina); etnia e gênero (essenciais para ficar bem com afro-brasileiros e mulheres); povos (sempre no plural, "os povos da floresta", "os povos da rua", no singular saiu de moda, lembra o populismo dos anos 60, só o Brizola usa); cidadania personifique-a: a cidadania fez isso ou aquilo, reivindicou, etc.).

Para maior efeito, tente combinar duas ou mais dessas palavras. Resgate a diferença. Melhor ainda: resgate o olhar do outro. Atinja a perfeição: desconstrua, com um novo olhar, os discursos negadores do multicultiralismo. E assim por diante.

Como no caso dos autores, certas palavras comprometem. Você parecerá demodé se falar em classe social, modo de produção, infra-estrutura, camponês, burguesia, nacionalismo. Em história, se mencionar descrição, fato, verdade, pode encomendar a alma.

Além dos autores e do vocabulário, é preciso ainda aprender a escrever como um intelectual acadêmico (note que acadêmico não se refere mais à Academia Brasileira de Letras, mas à Universidade). Sobretudo, não deixe que seu estilo se confunda com o de jornalistas e outros leigos. Você deve transmitir a impressão de profundidade, isto é, não pode ser entendido por qualquer leitor. Há três regras básicas que formulo com a ajuda do editor S. T. Williamson. Primeira: nunca use uma palavra curta se puder substituí-la por outra maior: não é "crítica", mas "criticismo". Segunda: nunca use só uma palavra se puder usar duas ou mais: "é provável" deve ser substituído por "a evidência disponível sugere não ser improvável". Terceira: nunca diga de maneira simples o que pode ser dito de maneira complexa. Você não passará de um mero jornalista se disser: "os mendigos devem ter seus direitos respeitados". Mas se revelará um autêntico cientista social se escrever: "o discurso multicultural, como ser desconstrutor da exclusão, postula o resgate da cidadania dos povos da rua".

Boa sorte!




...boa sorte MESMO!

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